quinta-feira, 27 de maio de 2010

Ditadura & inocência> Autor: Damião Metamorfose.

*
Nasci no meio do mato,
Nos cafundós do sertão.
Sem rádio, jornal, revista,
Cinema e televisão.
Cresci como um indigente,
Meio bicho, meio gente,
Sem eira, beira ou brasão.
*
Subvida, escravidão,
Cheguei a pedir esmola.
Fui pra roça muito cedo,
Sem direito a jogar bola.
Com dez eu fui estudar,
Mais pensando em merendar,
Do que pensando em escola.
*
Ainda bem rapazola,
Devido à necessidade.
Eu precisei me mudar,
De casa, estado e cidade.
Com ajuda de um pistolão,
Tirei minha certidão,
Mudei também minha idade.
*
Consegui maioridade,
Fui morar na capital.
Lá eu tive acesso a tudo,
Cinema, rádio, jornal...
Estudei e descobri,
Que por um tempo eu vivi,
Tratado como animal.
*
No meio do matagal,
Onde eu antes residia.
Trabalhando de meeiro,
A única festa que eu ia.
Era a treze de dezembro,
Da padroeira, inda lembro,
A casta Santa Luzia.
*
Pai e mãe por companhia,
Cada um em uma mão.
Seguindo atrás do andor,
Rezando e em procissão.
Se os meus pais se afastassem
E os meninos me pegassem,
Levava tapa e empurrão.
*
Tinha parque e diversão,
Trenzinho, roda gigante,
Joguinhos de laça-laça,
Musica no alto falante.
Eu via, mas não brincava,
Pai, sem dinheiro, falava,
Comida é mais importante.
*
Tomar um refrigerante,
Só quando estava doente.
Botavam no pé do pote,
Porque o bicho vinha quente.
E era sempre um guaraná
Antártica, o melhor não há,
Que idéia inteligente!
*
Meu país e continente,
Era o que a vista alcançava.
Pra mim a nevoa na serra,
Era uma nuvem que enganchava.
E o arco-íris celeste,
Quando eu via aquele peste,
Ia atrás, mas não pegava.
*
Nos anos de seca brava,
Quando a chuva não caia.
Se o açude secasse,
Até muçum eu comia.
Na lei da sobrevivência
E em caso de emergência,
Se não corresse, morria.
*
Água barrenta eu bebia,
Quente e achava gelada.
Com urina de animais,
Às vezes infectada
Mas Deus foi tão generoso,
Que eu cresci foi garboso,
Poeta e cobra criada.
*
Meu pai foi peão de estrada,
Cassaco, assim se dizia.
Em troca do seu trabalho,
O que ele recebia...
Óleo, fubá e farinha
E “buggy” um arroz que vinha
Das sobras, da burguesia.
*
O tal do “buggy” crescia
Na água, uns cem por cento.
Uma xícara dava dez,
Mas tinha um sabor nojento.
E a carne que ele ganhava,
Eu lembro que mãe falava,
Esse diabo é de jumento.
*
Eu via esse sofrimento,
Sempre esperando a melhora.
Ainda bem que o meu mundo,
Era o aqui e agora.
Porque o resto do país,
De ordem e progresso infeliz,
Matava o mundo lá fora.
*
Hoje tem que me ignora,
Quando falo do passado.
Dizem para eu esquecer,
Mas vou deixar arquivado.
Se poesia é cultura,
Os tempos da ditadura,
Pra mim não foi explicado.
*
D-eus me deu um dom sagrado,
A-gora eu tenho ciência.
M-eu passado foi sofrido,
I-mpossível é ter demência.
A-cabo o cordel dizendo
O-brigado à inocência.
*
Fim
*
27/05/2010